[Artigo] Lemaitre: O relâmpago branco

Lemaitre: o relâmpago branco:

Pela primeira na história um caucasiano fez menos de 10 segundos nos 100 metros: dado novo para uma discussão cultural e racial que tem crescido no último mês. Das visões inconclusivas da ciência às certezas empíricas do treinador português Moniz Pereira... Houve, finalmente, um relâmpago branco no atletismo mundial: 9,98 segundos. Histórico.

Pode um caucasiano correr os 100 metros em menos de 10 segundos? Antes dir-se-ia que talvez não. Depois do que o velocista francês Cristophe Lemaitre, um branco, fez no dia 9 de Julho, nos Campeonatos de França - boa forma depois confirmada com o ouro nos Europeus de atletismo em Barcelona -, a questão já não pode, porém, ser respondida da mesma forma. Houve, finalmente, um relâmpago branco no atletismo mundial: 9,98 segundos. Histórico.

É certo que se fala sempre dum outro branco, o polaco Marian Woronin, que em 1984 fez 10 segundos mas derivados do arredondamento de 9,992; fala-se ainda de Patrick Johnson, o sprinter descendente de pai irlandês e mãe aborígene australiana, logo de pele mais escura, que correu em 9,93; fala-se do japonês Koji Ito, que fez um tempo aceite de 10 segundos em 1998, é certo, mas nunca desceu daí. Na prática, no entanto, o que conta são os valores e os registos oficiais e aceites pela Associação Internacional de Federações de Atletismo e, nesse sentido, o francês Cristophe Lemaitre foi realmente o primeiro branco a correr os 100 metros em menos de 10 segundos.

QUASE RACISMO
Os 10 segundos são uma barreira mítica na modalidade desde Outubro de 1968, quando o norte-americano Jim Hines, negro, correu a distância em 9,95 segundos na altitude dos Jogos Olímpicos do México. O feito foi de tal ordem admirável que demorou quase 10 anos até ser repetido: Sílvio Leonard, cubano, também negro, em Agosto de 1977. Agora, neste último mês, quem tem falado é Lemaitre, permitindo um novo ângulo sobre uma questão que dura há décadas.

«Serei para sempre o primeiro branco a ter corrido os 100 metros abaixo dos 10 segundos. Ainda que olhar para a coisa nesta perspectiva não me agrade muito, não é algo a que ligue, mas já sei que daqui para a frente terei de me adaptar a essa ideia tão simples: o primeiro branco. Mas para mim isto não tem nada a ver com a cor da pele dos corredores mas sim com o treino e com a capacidade e com a vontade», disse o francês pouco tempo depois de ter quebrado a barreira.

O peso da história é esmagador e não permite conclusões fáceis. De tal modo que é difícil discutir este tema sem que alguém procure uma conotação racial, que pode de imediato ser maldosa e erradamente transformada em racista. Mas os factos são estes: antes de Lemaitre 71 homens no Mundo quebraram a barreira dos 10 segundos e, no total, estes 71 homens foram capazes de o fazer 465 vezes entre 1968 e 2010. Implica que, em média, a barreira dos 10 segundos é quebrada 11 vezes por ano mas foi preciso esperar 42 anos até que o primeiro caucasiano o conseguisse fazer. É impossível encontrar uma justificação que se prenda apenas com o treino ou com o acaso. Tem de haver mais qualquer coisa.

EXPLICAÇÃO DE ENTINE
Tudo isto tem despertado tanto interesse ao longo das décadas que há até livros exclusivamente sobre o assunto e, dentro deste tema, mais geral, entram em pormenores da própria geografia africana. O mais conhecido destes livros chama-se Taboo: Por que razão os atletas negros dominam o desporto e por que razão temos nós medo de falar do assunto, da autoria do escritor norte-americano Jon Entine e sobre o qual a cadeia de televisão inglesa BBC chegou a fazer um documentário.

Entine sublinha no seu livro que «os negros naturais ou descendentes da África ocidental detêm 35 por cento dos 900 melhores tempos em corridas de velocidade» e ainda que «atletas da África oriental, quenianos e etíopes em particular, detêm mais de metade dos melhores tempos em corridas dos 800 aos 10.000 metros». Estas são conclusões que apontam para uma especificidade racial, inclusivamente admitida pelos próprios treinadores. Uma questão lateral, mas no fundo com o mesmo propósito de discussão, costuma ser levantada com os melhores atletas de natação: normalmente brancos.
Os cientistas há anos que trocam argumentos, cada vez mais sofisticados, estudando grupos étnicos, centros de gravidade (normalmente mais altos nos negros), massas corporais, comprimentos das pernas e por aí fora. Certezas? Nenhuma.

EXPLICAÇÃO DE MONIZ PEREIRA
Mas voltando ao atletismo: A BOLA questionou Moniz Pereira, o mais reputado treinador nacional de atletismo, e obteve a seguinte explicação: «Na base de tudo isso há inquestionavelmente uma condição física, genética. Os resultados assim o provam ao longo das décadas. Os negros são mais flexíveis e musculados. São incontáveis as provas de velocidade em que não há sequer um branco na pista... Acontece frequentemente. O facto de brancos estarem a aproximar-se dos 10 segundos - e no caso do Cristophe Lemaitre até já desceu desse valor - é interessante e certamente um estímulo para corredores mais jovens, brancos. Acima de tudo, o que me parece é que os atletas precisam de motivação, de paixão, de crença. E, se assim for, está provado que tudo é possível.»